A BEATA – OS SANTOS – OS PECADORES – OS PUROS – O DEMÔNIO – A MORTE
Poemas de Antonio Miranda
(de Tu país está feliz, 1971)
Desenhos (nanquim, colagem e litografia)
de DARCÍLIO LIMA, extraídos do livro
DARCILIO LIMA: UM MUNDO FANTÁSTICO
(catálogo de exposição da Caixa Cultural, 2015)
A BEATA
A mácula de teu corpo
está em negar-se.
Condenas teu corpo
à inutilidade
e tua pureza é falsa.
Atávica e filantrópica
compartilhas com Cristo
sua coroa de espinho
e o beneplácito gesto.
Estás certa de tua salvação
e és capaz de julgar em Seu nome.
Importante saber como perder-se.
OS SANTOS
Os que nasceram puros
e morreram puros
nunca foram santos.
Arrepender-se é um dever de cristão.
OS PECADORES
A revelação da fé:
privilégio dos pecadores.
OS PUROS
Morrem cegos da verdade
Jesus anuncia-se pelos pecados.
O DEMÔNIO
Para isso foi inventado:
para medir a grandeza de Deus.
A MORTE
Quanto não vem mais da vida
cada dia
nosso temor.
Inventemos deuses
desesperadamente.
A imortalidade da alma:
há que eludir os deuses.
Deus
não pôde tornar perfeitas
as criaturas humanas
e se afastou das criaturas
tomado de vergonha.
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“Estes poemas sobre religiosidade faziam parte da primeira versão de “Tu país está feliz” em 1971. Causava muito impacto porque a cena idealizada pelo diretor Carlos Giménez colocava dois atores frente a frente recitando e, ao final, se esbofeteavam. O público reagia muito bem porque, a seguir, vinha a canção “Resgate de Cristo”, mais conhecida como “Jesucristo estaba loco”... baseada em poema na linha do teatro do absurdo, ou da antipoesia, mas com muito senso de humor. Depois da estreia foi incluído o poema “Autobiografia tardia” que expressava a visão de mundo do jovem pós-1968, a revolução cultural daqueles tempos. Carlos Giménez achou melhor suprimir os poemas acima. Nunca me explicou os motivos, mas entendi que eram para tornar menos contencioso ou polêmico o espetáculo, embora ele fosse, por natureza, propenso à polêmica... “ ANTONIO MIRANDA
A seguir, texto extraído de
GOMES JÚNIOR, Walter Dias. A poesia de Antonio Miranda e suas intersemioses. João Pessoa, PB: Universidade Federal da Paraíba, Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes; Departamento de Pós-graduação em Letras, 2014. Tese de doutorado, orientação de Zelia Bora. (p. 183-184)
“Daí em diante, a voz poética vai elencando sugestões de indivíduos, como a beata, os santos e os puros, que não imaginávamos possuir palavras que poderiam inflamar e seres de quem tudo de negativo esperamos, como os pecadores e o demônio, entrementes extraímos seu lado positivo. Esses contrapontos favorecem, esperpenticamente, o equilíbrio entre os opostos e servem de argumentos para a constatação de uma das principais características da antipoesia: a literatura de negação. / Enquanto esperamos elogios dos singulares perfis de uma beata ou dos santos, a antipoesia nega-os e isso é visível nos seguintes versos> “A mácula de teu corpo”, “está em negar-se”, “Condenas teu corpo”, “à inutilidade”, “e tua pureza é falsa”. O mesmo ocorre em: “Os Santos”, “Os que nasceram puros”, “e morreram puros”, “nunca foram santos”. Por outro lado, a negação é consolidada quando não se aponta o lado reprovável de quem possui grande quantidade: “”A revelação da fé”: “privilégio dos pecadores”. A sátira emana desse signos com a perspicácia típica do antipoeta.
A indexicalidade do pronome possessivo de segunda pessoa do singular neste poema demarca a profundidade de análise e apreensão da voz enunciadora para com o sujeito observado. O contexto representativo do índice alcança um destaque argumentativo maior pelo fato de o eu poético voltar-se aos nomes de Deus e Jesus Cristo a fim de intensificar os contrapontos que vem se posicionando como uma forte isotopia neste poema. A alusão à incapacidade e à limitação da ação divina de Deus sob a vida humana apresenta-nos a postura debochada do antipoeta. Qual a finalidade disso? Muitas seriam as respostas: gera um poema do absurdo, ressaltar a iconicidade da ironia, gerar a irreverência, ser provocativo ao mexer com a questão religiosa, construir a antipoesia, bem no estilo de Nicanor Parra. Diante disso, Elga Pérez-Laborde (2004b, p. 12) afirma que o poeta “aceita esse autodesafio para destruir os cânones quando grita que o demônio foi criado para medir a grandeza de Deus. Quando levanta o índice para assinalar a Deus e justifica sua ausência porque Ele não pôde tornar perfeitas as criatura humanas/ e se afastou das criaturas”. (...)
Em seguida, Walter Gomes Dias Júnior refere-se ao poema “Rescate de Cristo” (Resgate de Cristo” ver: ) com “a proposta de humaniza-lo, liberá-lo de sua institucionalização enquanto religião” (...)
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